quinta-feira, 17 de janeiro de 2008

Primeiro Emprego

Minha mãe é médica. Ela tem três celulares. Todos os três não param de tocar nunca. Eu pedi de presente de aniversário que ela os desligasse, só por aquele dia. Ela desligou. Minha mãe é muito ocupada. Meus vizinhos dizem que eu praticamente moro sozinha, e é verdade. Sendo assim, ela tem pouco tempo para me levar aos lugares que eu quero ir. Em especial, aos sebos. Ah, sim, pois sou traça de livro. Leitora compulsiva. E tenho o desprazer de morar em uma cidade sem livrarias. É, não existem livrarias em Belém. Somente papelarias ou bancas de revistas disfarçadas de livrarias. Não existe estabelecimento em Belém que venda somente livros. Ou existe.

Acontece que eu pedia há algum tempo para a minha mãe me levar a uma livraria nova, próxima ao trabalho dela. E terça, como ela trocou todos os plantões, tinha tempo para isto. Foi outro presente de aniversário que ela me deu.

Eu entrei e olhei ao meu redor. Juro, senti meu rosto ficando vermelho e uma vontade quase incontrolável de chorar. Era uma livraria, com todas as letras. Uma livraria na minha cidade. Uma livraria.

Olhei todas as prateleiras. Desde livros de poesia até livros técnicos. Livros de auto-ajuda e livros infantis. Tinha a coleção inteira do Flash Gordon! Flash Gordon! Aquele, cuja história eu sei até de trás para frente. Em edição especial com tiragem limitada. Tinha o Manual do Escoteiro Mirim, dos sobrinhos do Donald. Eles mesmo. E você que sempre quis que existisse aquele manual dos quadrinhos, hein? Pois bem, ele existe. E ensina até a lavar carro. Tinha uma coleção de Xadrez que eu procurava há mais de dez anos. Tinha todos os livros da Agatha Christie. Tinha Shakespeare. Em francês! Tinha toda uma vida em livros. Uma não, cem.

Enquanto eu arrumava coleções fora da ordem (como sempre com o meu perfeccionismo) com os olhos cheios d'água, o dono do local prostrou-se ao meu lado, percebendo o meu interesse. Ele, como bom vendedor, começou a me mostrar os clássicos, começando por Moby Dick. Eu respondia educadamente que já havia lido. Mostrou-me outros. "Também já li. Já li este, esse e aquele outro do canto também". E punha-me a resenhá-los todos. Era a vez dele de me olhar com encanto. Já menos tímida, comentei que as coleções estavam todas fora da ordem e que seria interessante organizar os livros do mesmo autor de acordo com a ordem de publicação. Também sugeri que não fosse a estante de esotéricos que ficasse próximo ao caixa, e sim a com os livros mais raros, para os clientes levarem mais livros. Ele me observava atentamente, parecia diverti-lo. Ele me perguntou se eu já conhecia a livraria, afinal. Respondi que não, que sempre desejara ir, mas minha mãe nunca pudera me levar. "Só que hoje é meu aniversário, então ela me deu isto de presente". Ele demonstrou real alegria, me desejou parabéns e perguntou quantos anos eu estava fazendo. De súbito, pareceu lembrar de algo e disse "sendo assim, vou te dar um livro de presente". Voltou alguns minutos depois com um livro de sua autoria. Não acreditei quando vi. Quer dizer que este era "aquele cara, mãe, que escreve aquelas crônicas que eu tanto amo no jornal". Ele! Ele havia gostado de mim!


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No carro eu fiquei pensando naquele encontro, naquele lugar. Cara, eu quero trabalhar lá. Quero mesmo. Que nem o J. R. Moehringer, em "Bar, Doce Lar". Quero torrar todo o meu salário naqueles livros. Afinal, eu já posso trabalhar! Tenho dezesseis anos, poxa. É, é isso. Eu vou trabalhar lá. Tenho que arranjar tempo para isto. Vou primeiro tirar minha carteira de trabalho, transferir o horário do francês, mas eu vou trabalhar lá.

Um comentário:

Celeste Garcia disse...

Caraca, essa foi uma história e tanto!

É por essas e outras razões que sempre me pego perguntando: coincidências existem mesmo?!

Parabéns de novo, Lena. Apesar de eu não te conhecer, já deu pra perceber que você é uma pessoa bem legal (Y)

E rumo ao primeiro emprego o/ !

beijo :*